Considerado o século dos avanços científicos e educacionais, em nossa sociedade, o prazer feminino continua sendo um tabu diante da sociedade
De castigos terríveis para aquelas que cometesse adultério até estupros “legalizados” e a fama incutida de que toda mulher oferece “perigo e falsidade”. A trajetória da sexualidade feminina continua sendo marcada por sofrimento e preconceito.
Durante o período da Inquisição da Igreja Católica na Europa, o clitóris foi posto como um “sinal” de que a mulher praticava bruxaria. Esse órgão, segundo os “estudiosos” da época, foi descrito como “o bico do seio do diabo”.
Enquanto no Egito Antigo, o clitóris e os lábios vaginais eram multilados como forma de evitar a infidelidade feminina. Ainda assim, aquelas que tinham algum relacionamento amoroso extraconjugal, e eram descobertas, tinham o nariz arrancado.
Já na Grécia Antiga, a libido das mulheres casadas era reprimida com sadismo: elas deveriam permanecer descalças durante todo o inverno pois, os pés frios – segundo crenças da época – faziam o desejo sexual diminuir.
Percebe-se que, durante toda a trajetória da mulher na terra, desde os clássicos até os dias de hoje, a sexualidade e o prazer feminino são alvos de estigma e preconceito. Considerado o século dos avanços científicos e educacionais, em nossa sociedade, o prazer feminino continua sendo um tabu diante da sociedade.
O MITO DO PRAZER FEMININO
Os mitos sobre o prazer feminino remontam desde as primeiras grandes civilizações – como exposto na introdução deste artigo.
“Os mitos sobre o prazer feminino são vastos e persistentes, refletindo e reforçando estereótipos de gênero e mal-entendidos sobre a sexualidade feminina. Esses mitos não só deturpam a realidade, mas também têm implicações significativas para a vida sexual e o bem-estar emocional das mulheres”, afirma Márcia Mariano, psicanalista e terapeuta familiar.
Alguns dos mitos mais comuns sobre o prazer feminino:
– O orgasmo é fácil e rápido de alcançar: este mito perpetua a ideia de que o orgasmo feminino deve acontecer rapidamente e com facilidade, semelhante ao masculino, ignorando a complexidade e a variabilidade do prazer feminino.
– Sexo é igual a penetração: a ênfase exagerada na penetração como a principal ou única fonte de prazer para mulheres ignora a importância do clítoris e outras formas de estimulação sexual.
– Todas as mulheres são capazes de ter orgasmos múltiplos: algumas mulheres podem experimentar orgasmos múltiplos e isso não é universal, e a expectativa pode criar uma pressão desnecessária.
– O prazer feminino é secundário ao masculino: existe uma tendência cultural de priorizar o prazer masculino sobre o feminino, marginalizando as necessidades e desejos das mulheres.
E aí, você já teve alguma experiência com algum desses mitos?
COMO ESSES MITOS IMPACTAM A VIDA SEXUAL E O BEM-ESTAR EMOCIONAL DAS MULHERES?
A noção de que o prazer feminino é apenas um “coadjuvante” na hora H, afeta significativamente a vida sexual e, principalmente, o bem-estar emocional das mulheres.
“Esses mitos podem levar a insatisfação sexual, pressão para desempenho, ansiedade e sentimentos de inadequação entre mulheres”, afirma Márcia.
Se uma mulher não está experimentando prazer durante o sexo, é provável que seu interesse pelo ato diminua ao longo do tempo. Isso pode levar a um ciclo negativo no qual a falta de prazer leva à evitação do sexo, o que por sua vez reduz ainda mais as oportunidades de encontrar satisfação sexual.
É importante ressaltar também que, a falta de prazer sexual pode levar a sentimentos de inadequação e baixa autoestima. As mulheres podem começar a questionar sua atratividade, desejo sexual e valor como parceira sexual.
É importante abordar qualquer problema de falta de prazer sexual dentro do relacionamento de forma aberta, empática e colaborativa. A comunicação aberta sobre desejos, necessidades e limites é fundamental para garantir que ambos os parceiros se sintam satisfeitos e conectados em sua vida sexual. Além disso, buscar orientação profissional, como terapia sexual, pode ser benéfico para abordar questões mais complexas relacionadas ao prazer sexual.
MÍDIA E REALIDADE
“A mídia frequentemente retrata o prazer feminino de maneira idealizada e simplificada, focando em estéticas irreais e ignorando a diversidade de experiências sexuais femininas. Essa representação pode criar expectativas irreais, levando a comparações prejudiciais e pressões nos relacionamentos pessoais”.
Ao associar o prazer feminino a padrões de beleza irreais, enfatizando a aparência física em detrimento da experiência emocional e sensorial, cria-se expectativas inalcançáveis gerando inseguranças nas mulheres em relação ao seu próprio corpo e desejo sexual.
Além disso, as mídia podem perpetuar estereótipos de gênero em relação ao prazer sexual, o que pode contribuir para dinâmicas desiguais e não saudáveis nos relacionamentos, como a pressão para que as mulheres priorizem o prazer do parceiro em detrimento do seu próprio.
AVANÇOS CIENTÍFICOS
Uma pesquisa do O Boticário, em 2023, ouviu mais de duas mil mulheres, de 18 a 60 anos, em todo o Brasil, e trouxe uma perspectiva sobre o prazer feminino, revelando o impacto dos tabus sociais – das imposições de gênero aos padrões de beleza- no comportamento de mulheres brasileiras com vida sexual ativa.
O levantamento da pesquisa foi conduzido pela Think Eva, consultoria que promove soluções para as desigualdades de gênero. A pesquisa “Prazer e Mulheres” revela que seis em cada 10 mulheres não dedicam tempo suficiente para explorarem e vivenciarem esse prazer. As principais justificativas atribuídas à resposta são: stress, sobrecarga (causada pelas múltiplas jornadas de trabalho) e a falta de informação a respeito do assunto.
Infelizmente são poucas as pesquisas sobre o prazer feminino. Historicamente, houve uma disparidade significativa nas pesquisas sobre o prazer feminino em comparação com o prazer masculino. Isso se deve a uma série de fatores, incluindo estigmas sociais, falta de financiamento para pesquisas relacionadas à sexualidade feminina e até mesmo preconceitos de gênero dentro da comunidade científica. No entanto, nos últimos anos, tem havido um aumento na conscientização sobre essa lacuna e um esforço crescente para preencher essa falta de pesquisa.
Segundo a psicanalista, as “pesquisas recentes têm se concentrado mais na anatomia e na fisiologia do prazer feminino, destacando a complexidade e a diversidade das experiências sexuais femininas. Avanços na compreensão do papel do clítoris, da importância da comunicação e do consentimento nas relações sexuais, e do impacto da saúde mental no desejo sexual são alguns exemplos”.
OS PRIMEIROS PASSOS PARA A DESCONSTRUÇÃO DESSES MITOS
Desconstruir esses mitos e promover uma compreensão mais ampla e inclusiva do prazer feminino pode ter um impacto positivo significativo na vida sexual e no bem-estar emocional das mulheres, permitindo-lhes explorar sua sexualidade de forma mais livre, autêntica e satisfatória.
Confira algumas dicas da Márcia para nós mulheres, para que possamos lutar contra a influência desses mitos em nossas vidas sexuais e emocionais:
– Eduque-se: busque informações confiáveis sobre sexualidade e prazer feminino.
– Comunique-se: fale abertamente com parceiros(as) sobre suas necessidades, desejos e limites.
– Procure apoio: em caso de dificuldades emocionais ou sexuais, considere procurar apoio de terapeutas ou conselheiros especializados em sexualidade.
– Desafie os mitos: reconheça e desafie ativamente os mitos e estereótipos sobre o prazer feminino em suas interações e diálogos.
“O prazer feminino é uma colcha de retalhos rica e complexa, entrelaçada com fios de biologia, emoção, psicologia e relacionamentos. A jornada para desvendar e entender essa complexidade é profundamente pessoal, mas também universalmente relevante. Cada mulher carrega em si o potencial para uma exploração profunda e gratificante de sua própria sexualidade, livre dos grilhões dos mitos e mal-entendidos que por muito tempo moldaram o discurso em torno do prazer feminino.
Ao nos despedirmos deste tema, lembremo-nos de que a busca pelo conhecimento, a comunicação aberta e honesta, e a compaixão por nós mesmos e pelos outros são chaves vitais para desbloquear uma experiência sexual mais rica e satisfatória. Que possamos todos avançar com a coragem de questionar o status quo, a curiosidade para explorar os vastos territórios de nossa sexualidade, e o compromisso de apoiar um ao outro nesta jornada de descoberta e aceitação.
Nunca é tarde para começar a dialogar, aprender e crescer. Juntos, podemos transformar a maneira como a sociedade entende e celebra o prazer feminino, pavimentando o caminho para um futuro onde cada mulher é dona de sua sexualidade, livre de julgamentos e plena de alegria”, termina ela.
Márcia Mariano é Analista e Treinadora Comportamental além de Psicanalista e Terapeuta Familiar